
Predicados antes atribuídos à séries ficcionais, ou conceitos radicais de indivíduo-máquina estão cada vez mais presentes em nosso cotidiano e na cultura que nos cerca. Reflexões sobre o papel da tecnologia perpassam todas as áreas e na arte não seria diferente. Vivemos no futuro e artistas ciborgues nos rodeiam. E não seríamos nós mesmos ciborgues?
A quimera futurista
Em 1843, Edgar Allan Poe publicou o conto The Man That Was Used Up. Na história, o personagem principal é um general com todo o corpo formado por próteses extensivas. Apesar de não utilizar o conceito de ciborgue - que foi criado mais de um século depois - temos aqui um dos primeiros exemplos desses ‘super-humanos’ registrados na cultura.
Ao pensarmos em ciborgue, no mesmo momento o nosso imaginário recria imagens de mutações entre pessoas e máquinas, uma mescla e releitura futurista da quimera. Imaginamos uma utopia, uma narrativa distante ou então, nossa mente é tomada por personagens da cultura pop, heróis e anti-heróis da ficção científica. Nos vem nomes como Schwarzenegger em O Exterminador do Futuro, o próprio personagem Ciborgue dos Jovens Titãs da DC Comics e até mesmo a construção híbrida de Darth Vader em Star Wars.
Mas, há diversos autores que defendem (e podem provar) que a era ciborgue é o aqui e agora e nós já somos representantes desse momento pós humano. A arte não escapa desse processo, trazendo à tona reflexões acerca da ciência, tecnologia e sociedade, seja em suas produções ou até mesmo no seu modo de vida.
Mas afinal, o que é um ciborgue?
Cybernetics + organism = Cyborg
O conceito ciborgue é plural e cada autor ou autora pode conceituar de uma forma diferente. A criação do conceito é atribuída à Nathan Kline e Manfred Clynes, que em 1960 conceituaram ciborgue como “Homem Ampliado”, um híbrido entre humano e máquina. O termo foi cunhado no artigo “Cyborgs and Space” em 1960 e combina as palavras ‘cybernetics’ e ‘organism’.
"Para o complexo organizacional exogenamente estendido funcionando como um sistema homeostático integrado inconscientemente, nós propomos o termo 'Cyborg' (...). O propósito do Cyborg, assim como seus próprios sistemas homeostáticos, é prover um sistema organizacional no qual tais problemas semelhantes a robôs são atendidos de forma automática e inconsciente, deixando o homem livre para explorar, criar, pensar e sentir ", escreveu Clynes e Kline. [The Atlantic]
Apesar de nos remeter à imagem clássica de ciborgue, metade humano, metade máquina, as contribuições de Kline&Clynes ultrapassam esse limite. Elas perpassam a adaptação do indivíduo no espaço, a superação das barreiras do cérebro, a potencialidade da humanidade.
Mas afinal, o que é um ciborgue?
No natal de 1982, era lançado no Brasil um dos filmes que se tornou referência no campo da ficção científica. Baseado no romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? de Philip K. Dick, Blade Runner trouxe consigo questionamentos acerca da identidade e humanidade. O que significa ser humano? O que garante que nós não somos replicantes pré programados para acreditar na nossa suposta humanidade?
Paralelo a isso, poderíamos considerar que os andys de Blade Runner são ciborgues? Essa discussão pode ser alimentada também com a diferenciação dos conceitos de robô, androide e ciborgue. Para responder essa pergunta, a revista Super Interessante diferenciou os termos a partir de outra obra da ficção científica que tinha o ator Harrison Ford como expoente: Star Wars. Com base no livro Cybercultura, Ciborgues e Ficção Científica: Consciência e o Pós-Humano, de William Haney, a diferenciação proposta é:

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Robôs são máquinas que possuem ações pré-programadas de forma autônoma;
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Um androide seria um robô com aspecto humano;
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Já os ciborgues são híbridos: parte humanos, parte máquinas.
Porém, é inegável que os limites entre esse conceitos estão cada vez mais embaçados, não claros. Por isso que tanto se discute sobre a fronteira entre o natural e artificial e o que nos torna seres humanos superiores, melhorados. Com isso, aquilo que parece distante e apenas produto de ficção científica, está mais próximo do que imaginamos. Questões que colocam em xeque a própria essência da humanidade, dizendo que talvez, nos dias de hoje, não haja sequer um ser humano completamente natural, que todos nós somos ciborgues.
"Integre-se, pois, à corrente. Plugue-se. Ligue-se. A uma tomada. Ou a máquina. Ou a outro humano. ou a um ciborgue. Torne-se um: devir-ciborgue. Eletrifique-se. O humano se dissolve como unidade. É só eletricidade. Tá ligado?", Tomaz Tadeu da Silva. [Antropologia do Ciborgue]
O Manifesto Ciborgue
No estado da Califórnia (EUA), em 1985, em uma revista de cunho marxista, chamada Socialist Review, a bióloga e filósofa Donna Haraway publicou o seu famoso texto
Um Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e
Feminismo Socialista no Final do Século XX. Nele,
Haraway utiliza da imagem do ciborgue como
uma analogia ao feminismo, segundo Caroline
Catarino, a proposta política de Haraway é
que “o ciborgue, um personagem recorrente
na ficção científica contemporânea, é
utilizado como metáfora para a crítica
da identidade em favor das diferenças
e para reivindicar as possibilidades de
uma apropriação politicamente responsável da ciência e da tecnologia”.
A teoria de Haraway pode ser chamada de revolucionária, criando novos paradigmas de pensamento e sendo precursor de novos movimentos, como o ciberfeminismo por exemplo. A lógica do argumento é:
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O ciborgue coloca em xeque os conceitos opostos de natureza e cultura, self e mundo;
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Esse “natural” se refere como a realidade está posta, logo, não é passível de mudança;
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Ora, as relações entre gênero é edificada em um opressor e um oprimido numa relação posta como “natural“. Por gerações, mulheres foram consideradas como “naturalmente” frágeis e predestinadas a serem submissas, mães e esposas;
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Contudo, se todos os indivíduos não são naturais, e sim um constructo, tais como ciborgues, isso significa que tudo pode ser escolhido, assim, nada é determinado, tudo pode ser questionado.
E como somos todos artificiais? Considere essa queloide no seu braço (marca de vacina) ou os óculos que usa como uma marca ciborgue.

A Arte Ciborgue
As reverberações do trabalho de Haraway podem ser observadas em diversas áreas, inclusive na arte, como na coleção da Gucci em 2018. Sempre foi atribuído à arte o papel de colocar em discussão temas que interferem em nosso cotidiano, questões inseridas na cultura. No mesmo caminho, temos a tecnologia, hoje, completamente presente em todos os passos que damos.
Tecnologia essa que vem desde o princípio, com a xilogravura e fotografia, questionando a produção de arte. Autores como Walter Benjamin acreditavam que haveria uma perca de autenticidade devido ao caráter reprodutório das obras, fazendo assim apenas a arte pela arte. Contudo, é possível notar que a tecnologia foi incorporada ao fazer arte, criando categorias como arte digital e motion graphics.
Porém, há artistas que ultrapassaram o que entendemos como arte digital e fizeram de si mesmos, a personificação daquilo que compreendemos como ciborgue, através de seu sentido clássico, indivíduo-máquina. Senhoras e senhores, androides e robôs, conheçam os artistas ciborgues
Como escutar as cores e o primeiro ciborgue
A expressão “ver o mundo em preto branco” foi uma condição real para um artista inglês durante 20 anos. Neil Harbisson nasceu com acromatopsia, até que em 2004 ele conectou em seu crânio uma peça, uma espécie de antena, chamada eyeborg
que o permite escutar as cores. Com esse feito, o artista que cresceu na Província de Barcelona, se tornou o primeiro ciborgue oficialmente reconhecido por um governo.

"Criei uma antena capaz de identificar a frequência, a vibração das cores, e mandar para o meu cérebro (...) Eu consigo ouvir o barulho da comida. Ir ao museu e ouvir um Picasso, um Salvador Dali. O jeito que eu percebo as pessoas mudou também. Cada rosto tem uma melodia para mim" - Neil Harbisson
Com essa façanha, o trabalho de Harbisson foi classificado pelo The Guardian como uma das 10 performances de arte mais chocante de todos os tempos, ao lado de nomes como Marina Abramović e Yoko Ono.
Em 2010, Harbisson co-fundou uma organização internacional que tem por objetivo auxiliar as pessoas tornarem-se cyborgs e promovendo o “cyborgism” como movimento artístico. A fundação Cyborg foi fundada junto com Moon Ribas, uma amiga de infância de Harbisson, também artista e ciborgue que consegue sentir o interior do planeta.
A dança do movimento terrestre
Em 2007, a artista catalã Moon Ribas se tornou uma ciborgue. Com implantes nos pés, Ribas consegue captar a movimentação sísmicas, com esse material, ela cria performances únicas com a dança.
Além de sentir o “batimento cardíaco do planeta”, a artista também é capaz de sentir a presença de pessoas que se aproximam, mesmo que não estejam em seu campo de visão, com a ajuda de implantes nas orelhas.

O curioso é que o sensor sísmico de Ribas permite que ela também consiga sentir a atividade sísmica da Lua. Dessa forma, a artista pode estar fisicamente na Terra, mas seus pés são capazes de sentir a Lua. Logo, ela pode estar na Terra e no espaço ao mesmo tempo.
A arte que ultrapassa o imaginável
A tecnologia e a história da arte sempre estiveram juntas, sendo uma constante intrínseca da outra. A cada passo que a tecnologia dá, a arte responde com novas poéticas, novas estéticas. Haveria um limite nesse processo? Ao incorporar, de forma radical, elementos tecnológicos em nossos corpos, o que podemos esperar de nós mesmos e do futuro, de toda cultura que nos rodeia?
"Não devemos ter medo de nos tornarmos ciborgues. Se não tivermos luz no futuro, podemos criar uma visão noturna, por exemplo. O quanto mais pudermos nos desenhar, melhor para o planeta. Vocês são a primeira geração que podem fazer isso, então façam isso" - Neil Harbisson
Ainda hoje, há mais perguntas que respostas, o ceticismo é uma variável presente e é difícil mensurar aonde podemos chegar
Pessoas como Harbisson e Moon assinam e defendem a proposta política promovida por Haraway e imaginada antes apenas na ficção. Bem-vindos sobre-humanos, e saúdem a era do manifesto ciborgue.